Carta de nº 628
Prezado Desconhecido,
Meus pulsos fraquejam no contorno dessas letras, mas a brisa que trás a nova estação me dá um motivo maior para continuar.
As mudanças ao meu redor são sempre alheias. As mais diversas emoções tramitam nos rostos daqueles que consigo observar debaixo de minha janela.
Não deixe os olhos enganarem, pois estou sim, incontestavelmente distante.
Por falta de possibilidades, só me resta observá-los. Suas hesitações, suas desilusões, quedas, ascensões . . . Paixões.
Paixão por todas as coisas. Paixão esta que, ferviam seu sangue, enrubescendo suas faces, conferindo-lhes um ar . . . Diferente. Digo “diferente” porque não me cabe denominar com exatidão algo tão contrário à minha realidade.
As coisas ao meu redor continuam imutáveis e empoeiradas dentro de meu intacto aposento. Pilhas e mais pilhas de escrituras que datam desde minha infância, compõem esta paisagem monótona. Em todas elas, contém um pouco de meus incessantes pensamentos. Tantos pensamentos para quem mal teve o que contar . . . Um dia, quem sabe, você os poderá ler.
Quanto à minha face? Distribuo sorrisos quase que incontroláveis misturados com meus olhares avidamente curiosos (coisas de momento). No entanto, jamais compartilhei dessa tal “enrubescência”.
Não sei porque continuo a escrever lhes essas mesmas palavras, mas . . . Deixe me ver algo de novo.
Na madrugada de ontem, mal consegui pregar os olhos. Debrucei-me então sobre a superfície fria de minha janela. A lua iluminava palidamente todos os elementos pulsantemente vivos e adormecidos daquela noite. Inclusive um pássaro que havia a pouco pousado em meu parapeito. Tão perfeito como jamais vi, suas asas eram pálidas e cintilantes . . . Encarou-me por poucos segundos e alçou vôo entre as árvores que floresciam as mais belas flores de cerejeira. Éramos talvez, as únicas criaturas conscientes naquela escuridão. Porém, o pássaro jazia da mais completa liberdade . . . Enquanto eu, que cheguei a pensar por alguns segundos em segui-lo, senti tão fortemente em meu pulsos as correntes invisíveis que, não pude conter uma lágrima tão límpida . . . Tão dolorosa. Veja só, e eu que tinha pensado tê-las guardado tão profundamente há tanto tempo.
A primavera então chega e até mesmo eu floreio como tudo que há de vivo a minha volta. Floreio, porém, da forma mais apática e sombria. Mas não posso retrucar, pois também respiro, também sinto o mesmo ar completar os meus pulmões, também sinto a mesma brisa perfumada em meu rosto.
Espero que também possa desfrutar dessas mesmas sensações . . .
Onde quer que esteja
Caro Desconhecido.