terça-feira, 15 de novembro de 2011

Lembranças da Torre (parte I)

Carta de nº 628

Prezado Desconhecido,
Meus pulsos fraquejam no contorno dessas letras, mas a brisa que trás a nova estação me dá um motivo maior para continuar.
As mudanças ao meu redor são sempre alheias. As mais diversas emoções tramitam nos rostos daqueles que consigo observar debaixo de minha janela.
Não deixe os olhos enganarem, pois estou sim, incontestavelmente distante.
Por falta de possibilidades, só me resta observá-los. Suas hesitações, suas desilusões, quedas, ascensões . . . Paixões.
Paixão por todas as coisas. Paixão esta que, ferviam seu sangue, enrubescendo suas faces, conferindo-lhes um ar . . . Diferente. Digo “diferente” porque não me cabe denominar com exatidão algo tão contrário à minha realidade.
As coisas ao meu redor continuam imutáveis e empoeiradas dentro de meu intacto aposento. Pilhas e mais pilhas de escrituras que datam desde minha infância, compõem esta paisagem monótona. Em todas elas, contém um pouco de meus incessantes pensamentos. Tantos pensamentos para quem mal teve o que contar . . . Um dia, quem sabe, você os poderá ler.
Quanto à minha face? Distribuo sorrisos quase que incontroláveis misturados com meus olhares avidamente curiosos (coisas de momento). No entanto, jamais compartilhei dessa tal “enrubescência”.
Não sei porque continuo a escrever lhes essas mesmas palavras, mas . . . Deixe me ver algo de novo.

Na madrugada de ontem, mal consegui pregar os olhos. Debrucei-me então sobre a superfície fria de minha janela. A lua iluminava palidamente todos os elementos pulsantemente vivos e adormecidos daquela noite. Inclusive um pássaro que havia a pouco pousado em meu parapeito. Tão perfeito como jamais vi, suas asas eram pálidas e cintilantes . . . Encarou-me por poucos segundos e alçou vôo entre as árvores que floresciam as mais belas flores de cerejeira. Éramos talvez, as únicas criaturas conscientes naquela escuridão. Porém, o pássaro jazia da mais completa liberdade . . . Enquanto eu, que cheguei a pensar por alguns segundos em segui-lo, senti tão fortemente em meu pulsos as correntes invisíveis que, não pude conter uma lágrima tão límpida . . . Tão dolorosa. Veja só, e eu que tinha pensado tê-las guardado tão profundamente há tanto tempo.

A primavera então chega e até mesmo eu floreio como tudo que há de vivo a minha volta. Floreio, porém, da forma mais apática e sombria. Mas não posso retrucar, pois também respiro, também sinto o mesmo ar completar os meus pulmões, também sinto a mesma brisa perfumada em meu rosto.
Espero que também possa desfrutar dessas mesmas sensações . . .
Onde quer que esteja
Caro Desconhecido.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Flutuante

Desenho essas letras.
Desenho essas letras com gosto de sal. Lágrimas e Maresia.
A pequena embarcação oscila o tempo todo na turbulência de suas infinitas ondas. Suas emoções fluem tão fortemente em mim que as vezes mal posso me reconhecer.
Não . . . Você sabe que nunca naveguei por aqui. O oceano mais lúdico e sutil de meu mundo. Se você soubesse como a sutileza é tão magnificamente complexa . . .
Os relógios jamais funcionam, assim como as bússolas.
Incontáveis, infindáveis minutos se passam em sua realidade eterna, porém jamais é o suficiente.
Me perco inúmeras vezes entre suas águas serenas da forma mais tola possível . . . Sofro de forma tão contida, quase como uma necessidade autodestrutiva .
Minhas lágrimas se refletem nas tortuosas tempestades que se consomem nas noites escuras.
Todos dormem a milhas de distância, enquanto eu me deito no assoalho de minha embarcação . . . E sinto todas as gotas fazerem parte de quem eu sou.
Sonho constantemente com seus traços e com nossos futuros se entrelaçando tão decididamente, como se isso não estivesse mais em nosso controle.
Acordo com as ondulações do mar e só vejo água por onde quer que eu olhe (se você soubesse o que se passa em meu coração nesse momento . . .)
Desejo o próximo cais com uma ânsia tão desesperada que não consigo esperar. Não posso esperar.
Desenho essas letras nesse papel amarrotado e me debruço sobre ele para que você possa sentir todo o meu cheiro de mar e toda a minha angústia. Que você sinta isso a cada vez que seus dedos tocarem as partes amassadas do papel . . . os respingos de água salgada.
Que minha imagem se projete em sua mente quando por uma sorte do destino, avistar a minha velha garrafa longínqua . . . Flutuante.

domingo, 9 de outubro de 2011

Encharcada

Com sua palidez e seus olhos injetados você vêm pra me amedrontar.
Saindo de seu lago negro e denso você me puxa como uma boneca de trapo . . . Fazendo questão que eu conheça sua profunda confusão, que me afogue entre suas algas negras . . . assistindo as bolhas de vida se esvaindo de mim, flutuando infinitamente até meus olhos serem incapazes de definir suas linhas.
Retrato distorcido e defeituoso, é você, meu reflexo no lago negro.
Dentro de seu mundo, que você diz ser meu, eu não conheço nada disso.
O piso de madeira rangia a cada passo. Poeira translúcida e teias cobrindo todos os frágeis elementos, os laços, a penteadeira . . . Envelhecendo-os de uma forma sombria como os olhos de todas aquelas bonecas. Espelhos quebrados, cortinas rasgadas e segredos trancados.
Minhas mãos tocam a superfície da janela e logo posso distinguir sua silhueta distante, tocando as grades do velho portão.
Seus olhos dizem "deixe-me entrar" Meus olhos respondem fechando-se, desejando sumir daquela dimensão.
Quanto mais a ignoro mais posso sentir sua presença . . . E o que não passava de um reflexo distante, agora se transforma em uma enorme sombra a um palmo de meu rosto, divididos pelo vidro da janela. Vidro este, esfumaçado com minha respiração.
"Deixe-me entrar"
"Deixe-me sumir", eu digo.
Sombras invadem toda aquela imensidão decadente.
Sombras me envolvem.
Sombras me calam.
Sombras me acordam e sussurram "está só em sua mente".

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Interlúdio

A poeira brilhante foi derramada incessantemente.
Efêmera e translúcida, fazendo parte de tudo.
Cada partícula que caía levemente tocava os seus cílios, fechava os seus olhos, a despia de um mundo de significados. Sua chuva levava embora, evanescia tudo o que ela pertencia, pois nada disso a possuía. Nada daquilo poderia defini-la, assim como não poderia definir ninguém.
Desceu de um altar de onde nunca esteve.
Lavou-se de sua máscara com suas lágrimas.
Tirou sua armadura deixando transparecer sua infindável contradição particular.
Olhos como portas. Portas das quais empurrava, agora sem nenhum esforço.
Segurou sua mão e o puxou para que pudesse ver de perto as árvores palidamente iluminadas, o céu e sua noite que não tinha fim. Suas escrituras, seus sonhos que se escondiam entre as sombras . . . sua floresta e sua tão inestimável história.
Entre todas as coisas, mais que palavras, gestos, canções e atenções . . . entre todo o seu sentimento que já não podia mais ser calculado . . .
Esse era o seu presente mais precioso, mais especial.
Mostrar o seu mundo mais profundamente secreto.
Cobrí-lo de seus pensamentos.
Fazê-lo adormecer na confusão de seus sonhos.
Fazê-lo com que a liberte de suas correntes.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

This lullaby

"Seus olhos estão brilhando?"
. . . Foi o que ele perguntou antes que ela pudesse acordar de seu sonho.
Mas que erro mortal! Seus olhos estavam abertos. Estaria mesmo tudo isso acontecendo?
"É só a luz que faz com que eles fiquem assim", ela respondeu enfim. Estava literalmente exposta aos holofotes e dessa vez eles eram reais, não eram mais os seus terríveis holofotes figurativos que a haviam deixado exposta diante de todos a algum tempo atrás. Esses daí já tinham apagado faz tempo. A platéia já havia se retirado. E agora só havia sobrado o escuro, o silêncio e a sua figura pálida, prostrada no meio do palco.
Isso não era o fim e ela sabia. . . esse era finalmente o começo. . . e algo crescia exponencialmente em seu peito (mais do que desejava e mais do que gostaria de admitir).
Era perfeito porque já não estavam mais presentes todos aqueles olhos injetados, esperando avidamente o próximo ato da peça. . . sentindo o gosto do veneno de baixo da língua. Era perfeito porque não havia ninguém para presenciar o que de mais sublime estava acontecendo. E no fundo, aqueles olhos não mereciam presenciar.

Estava em seu mais profundo estado de latência logo depois do furacão.
As folhas emaranhadas em seu cabelo, o vestido em frangalhos e os olhos petrificados.
Era assim como estava por dentro quando ele a viu e desviou o seu olhar. Ele.

Ele e seus dedos e suas cordas. Seu silêncio, sua incerteza, suas expressões.
Seus olhos agora não se desviam mais. Eles se fixaram em seu rosto. . . e sinceramente. . . ela não fazia ideia do que tanto ele conseguia enxergar.
Ele a segurou como se ela fosse um passarinho de asas quebradas, dentro de uma caixa de sapato e derramou sua canção em seus ouvidos. . . enchendo o seu coração daquilo de novo. Daquilo que a recuperava e que fazia com que ela não conseguisse respirar direito ao mesmo tempo. Só a simples ideia da ausência de sua sombra em volta de si já a assustava.

E assim permaneceram, imóveis no palco como se fosse a última cena, enquanto as luzes se esvaíam lentamente. . . onde só sobrariam. . . os olhos.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

a forest bird never wants a cage

Já havia um tempo desde quando ela deu os primeiros passos tortos entre as folhas secas e aberto seus novos olhos para o mesmo velho mundo que agora era tão cheio de elementos encantadores . . . e ilusionistas.
Mas estaria eu contando essa história de trás pra frente?
Como tudo sempre começa pelo amanhecer, foi com os seus raios que podemos descrever cada pecinha do que era seu mundo. Estava onde sempre esteve, em sua dimensão paralela, intacta, como gostava de dizer. Perfeitamente posicionada como um troféu, como uma boneca de coleção empoeirada, cheia de seus velhos e indefectíveis detalhes. Examinando mais uma vez todos os laços, todos os arabescos, todas as rosas, todas gotas fossem de chuva, lágrimas ou orvalho . . . tudo que ornamentava sua assustadoramente linda gaiola.
Assustadora.
"Foi uma aventura e tanto", pensou . . .
Havia acontecido tanta coisa que era uma exaustão só de pensar em organizar tudo cronologicamente. Mas por outro lado, ela sempre se recordava de cada detalhe como fragmentos espalhados em sua memória . . . gostava até . . .
Desde pequena sempre acreditou que tinha tudo do que precisava e que não queria saber de outra coisa. O mesmo coraçãozinho voluntarioso e orgulhoso que se contentava com toda beleza que vinha de fora . . . achando que era mais seguro ver tudo de longe, dentro da redoma. Porque então sempre faltava alguma coisa?
Sem saber o que poderia ser ou se revelar, desatou o laço e se livrou de todos os pássaros. Saiu perdida e desnorteada, não passando de uma boneca de estimação maltratada, exatamente como um pássaro de cativeiro, indefeso e perdido no meio da floresta.
Perdido, mas feliz.

domingo, 8 de maio de 2011

Tita'...

Nunca gostei de gatos . . . Acho que poderia começar assim.

Quando a gente se vê dentro do mesmo quadro velho, emoldurado . . . como se tivesse voltando pra onde sempre esteve. Nada era diferente, eu já conhecia a sensação de todas as cores se esvaindo aos poucos do mundo que estamos acostumados a enxergar.
A tristeza é bonita de vez em quando. Mais pra uns do que pra outros. É tudo uma questão de aprendizado e de percepção.
De noite, sentada na mesma escadaria entre tantas pessoas que passavam subindo os degraus, preocupadas com sua própria individualidade.
A mão apoiada no queixo. Aquele velho trejeito que já dizia muita coisa sobre mim.
O desejo era único e simples: ir pra casa. Como se aquilo fosse o fim de tudo, a última página do livro, a resolução de todos os problemas. Quantas pessoas já não sentiram isso?
Era nítido que eu estava esperando algo. Esperando mais do que somente alguém pra me levar embora. Havia muita coisa implícita. Mas ir pra casa era tudo o que eu poderia ter . . . depois de tudo.
E em modéstia parte, aquela estava sendo sim, uma linda tristeza . . . despercebida aos olhos comuns.
Foi quando ela apareceu.
Talvez, o único ser que estivesse enxergando tudo aquilo. Ou somente o único generoso o suficiente pra se aproximar de mim naquele momento.

Dela eu pouco conhecia. Só sabia que era uma filhotinha fêmea, rajada e arisca como todos os gatos. Algumas pessoas riam dela, outras tinham ímpetos de chutá-la ou somente a ignoravam . . . O que não era diferente de muitos seres humanos.

Assim como eu era invisível naquele momento, ela também era. A unica que insistia em me encarar.
Então, por um momento, achando que ela fosse fugir como todos os outros gatos, meus dedos tocaram sua cabeça. Mas ela somente fechou os olhos.
Parecia o suficiente pra aquele momento.
Era como se fosse uma troca daquilo que precisávamos exatamente naquele momento. Sermos notadas.
Entre todas as coisas, a verdade era só essa.
Todos os preceitos que eu guardava em relação aos gatos se esvaíram quase por completo. A gente sempre é ajudada por quem menos espera, como se dizem as avós.

Não existe julgamento e nenhum outro tipo de repreensão. Apenas sinceridade e uma necessidade de afeto mais que necessária. Assim são os animais.
E aquilo havia sido melhor do que palavras. Palavras que eu já conhecia e que poderia dizê-las pra mim mesma sozinha.

Nunca mais a vi depois.